Wednesday 4 November 2009

ordinal: 1º

Às vezes penso se minha mãe saberia dos meus amantes. Incomoda-me pensar isso, mas não sei se porque gostaria que ela o desconfiasse, sem nunca mo ter dito. Sento-me aqui à janela, seminua, toco as pernas de vez em quando, roo as unhas, leio livros. É cliché dizer que todo o mundo acontece lá fora? Porque quando olho lá para fora noto isto: todo o mundo acontece lá fora. Os carteiros e os carros, os homens de sobretudo, as mulheres, as crianças, os velhos, os pombos, os cães, os gatos... as ervas por entre as pedras da calçada, que nunca percebi porque têm o nome de "paralelos"... e, de resto, o que importa isto, senão como elemento a ocupar mais espaço? Um artifício de pensamento, uma técnica da prosa. Quando olho lá para fora sinto que todo o mundo, aliás, acontece cá dentro, conforme o olho e o sinto. E gosto de estar aqui, à janela, porque, assim, sei que tudo é real, as minhas pernas e os homens de sobretudo, a fumar cigarros no meio da rua, cheios de si mesmos, das suas preocupações, dos seus problemas, a viver as suas vidas, não cientes de mim, aqui em cima. Que percentagem tão mínima, os meus amantes, meu deus! E será que a minha mãe se preocupava com isso? Será que a minha mãe roía as unhas, no quarto ao lado, quando eu não voltava, à noite? Será que desconfiava de com quem eu estaria? Que imaginaria todas essas coisas, os corpos dos homens que me tiveram (e que tive, que ingénuo erro, o de presumir que só porque os seus sexos vermelhos e roxos e os seus rostos vermelhos e roxos sobre mim e dentro de mim, à vez, apenas eles me tiveram... e, na verdade, quantos, deles, me tiveram? A quantos deixei que me tivessem?) e o que me sussurrariam ao ouvido, quando, deitada de costas, me beijavam o pescoço antes de adormecerem?
A minha mãe nunca notou as minhas lágrimas, talvez isso não interesse para nada; não interessa, com certeza, agora. A gente nota que está tudo acabado quando perde uma pessoa, a minha mãe não volta mais e não adianta pôr-lhe flores na campa, nem visitar o lugar onde a enterraram. Na missa do funeral, o padre disse que um cemitério não é um sítio final, que em grego cemitério quer dizer "dormitório", e outras coisas acerca de dormir em paz e de primeiros cristãos. Julgo que isso me tenha dado ainda mais vontade de pensar o oposto. Morre em paz, mãe, acho... conforme perco tempo contigo, nestas considerações, é como se vivesses, não é? Lembro-me de quando me lavavas os joelhos, sempre que caía. De como me tentavas assustar no escuro, quando estavas zangada comigo. Às vezes não sei se tenho saudades tuas, mãe, é tão complicado... nunca soube nada, a sério, sobre ti. Tiveste amantes, mãe? A tua mãe roía as unhas por tua causa, imaginando-te nua, uma extensão dela, na cama com um homem que desconhecia, excitado contigo, estranho a ela mas parte de um bocado dela? Porra, que felicidade de não ter filhos, mãe! E lá fora o mundo existe, cheio de filhos, de pessoas que se perpetuam, se tivesse um filho podias existir mais uns anos, restos bioquímicos de ti dentro de um invólucro de carne e ossos, com coisas moles pelo meio, olhos, língua, isso.
Apetece-me falar de ti como se aqui estivesses, quando me vejo ao espelho, por vezes, pareço-me uma versão de ti com coisas do pai, também, e outras que, por mistura, são só minhas. Não tenho o teu corpo e por isso penso muitas vezes que, se o pai tivesse sido mulher, teria tido um corpo igual ao meu. Mas tenho os teus cabelos e o teu rosto, que imagem mórbida, já viste? É como se a gente os roubasse a quem nos pare. Como se a gente, quando nascesse, vos tirasse o cabelo e o rosto. Somos só coisas, cópias, "tem os olhos do pai", "tem o queixinho do avô" e logo eu, que nem sequer conheci o avô, só numas fotografias muito antigas, lá estava ele: o avô, sentado, de perna aberta num pomar, sobre um banco, com uma bengala e uma espingarda, a careca mais branca que o resto da fotografia e o bigode subitamente negro, como se fosse um corvo que lhe atravessava o rosto. O queixinho do avô, sério, a exigir "respeito! Sou eu quem põe o pão na mesa, nesta casa!" Se houvesse pequenos motins, insurreições no seu domínio residencial, no seu pequeno império de quatrocentos metros quadrados, um dedo indicando a espingarda na parede, ou um punho erguendo a bengala de pau-santo. Parece pau-santo na fotografia, no meio do pomar, com umas mulheres velhas à volta e as maçãs nas árvores. As mulheres caladas perante o queixo. Lá longe, nuvens, mas em nenhum lado mundo, como ali em baixo. Sabes, já nem me lembro do sobretudo do avô, na fotografia, teria sobretudo, mãe? Deves lembrar-te melhor que eu. No mundo, vês, há gente a sério, lá em baixo.
No meu corpo houve gente a sério que recebias em casa com sorrisos mas sei que ardias por dentro, oferecias-lhes sumo de laranja e cozinhavas-lhes bacalhau e carneiro mas sei que, se pudesses, os tinhas cegado com um garfo, à refeição, por terem usado o meu corpo, ou seja, um bocado do teu.
Mãe, ainda existes nisto que sou eu?

2 comments:

aquelabruxa said...

same same...
eu quero uma história!!!!

lol

groze said...

Eventualmente isto será uma história, estamos ainda a começar. Isto nem corresponderia sequer a um capítulo.