Tuesday 10 November 2009

Ordinal: 3º

Entretanto, sabe-se que anoitece e os olhos melódicos brilham no escuro como esferas pintadas de Outono. O quarto apodrece e o saxofone toca baixo para as plantas brotarem das paredes cinzentas que restam para nos proteger do mundo lá fora. Se eu pudesse descrever este quarto, em prosa, descreveria um coração, com aurículas e ventrículos que me albergam na forma estéril de um colchão e tapetes parecendo artérias que se arrastam e me arrastam vida fora num bater mecânico e compassado inventado pelo Coltrane. E se o coração apodrece, apodreço dentro dele como um feto numa mãe assassinada por três dólares.
Não sei até onde ir, assim, nua, quase primata, nesta despreocupação propositada de me tornar confortável: Tenho pêlos, ando curvada, não me pinto, não me penteio e procuro perder um nome já quase gasto em contos pós-modernos de autores mortos pela inquisição. Sou então uma religião perdida no espaço e reinventada pelo homem, ao sábado, quando as igrejas fecham e as flores nos cemitérios sucumbem ao vento aclamando um ciclone multicolor.
Quando, à noite, me deito ao lado de um homem e ele se desintegra, fecho-o no abat-jour do candeeiro da sala, junto dos outros, e sento-me no chão, de epiderme salgada a ouvi-lo ressonar, em uníssono com a Terra e, consequentemente, com o mundo lá fora.
Às vezes sonho que o meu coração serve de quarto a alguém.

Wednesday 4 November 2009

ordinal: 2º

Mantenho-me existente neste pensamento de quanto de ti me é,agora, Amor e concluo que poderás não ser mais que uma orquídea perdida no fumo céptico das florestas Amazónicas. Uma daquelas que nunca ninguém encontrou, que nunca ninguém desenhou e, ainda assim é uma parte da nossa respiração e, portanto, o nosso corpo todo que, celularmente nos aproxima da morte cada vez que beijamos. Temo ter beijado demasiado demasiados homens que sorviam no meu âmago com a língua repleta de poros que me tiravam as vísceras e os tornava rosáceos enquanto sorriam um sangue estranho da minha menstruação atrasada. Às vezes pedia-lhes desculpa e não entendia porquê, afinal eram eles que te levavam de mim e te cuspiam para sítios lavando a boca com um azul metileno sinistro. Sorriam para o meu corpo nu e me penetravam heroicamente com um sexo reles e corporal que me adormecia da vida. Adormecias também?
Hoje que me mantenho aqui a abraçar os meus próprios joelhos, acaricio a minha pele torturada de tanto contacto com gente a sério e faltas-me sem que eu me preocupe com isso. Pariste-me e eu fui-te matando numa inconsciência quase deliberada de te furtarem de mim e o que resta de ti em mim é a memória escassa de um corredor cheio de homens imaginários com foices de plástico descartável a decapitar o meu gato a sério que me morreu, por tua causa, tantas vezes em sonho. Os teus amantes eram maus, mãe, e para além disso ainda me restam medos esquisitos que me toquem nos seios por causa deles que, tantas vezes me falaram em italiano enquanto te despiam com os olhos e te enchiam o corpo de um sangue perfumado que te atraía para os seus joelhos. Não me censures por morrer, portanto. O mundo continua a acontecer todo lá fora: Cá dentro resto eu a morder o joelho direito e a sugar o sangue derradeiro de ti em mim para que circule e entendo que os meus seios crescem circularmente enquanto me brotam protuberâncias renais que me incomodam sem saber de ti nem dos meus amantes quando, subitamente, o pai entra em casa e ajeita a barba do dia anterior e pensa um pouco sobre as flores que nos restam no universo. Ao ver o meu estado pontapeia-me o maxilar e chama-me nomes equídeos, estranhamente recíprocos, que me ensanguentam e me aborrecem por ele não morrer do mundo lá fora, entendes avó? Agora que somos todos simples vítimas do sexo deslavado, que cores restam para filmar uma longa metragem? Vivemos num pequeno cubículo cinzento e assexuado que plantamos de flores que nos lembram familiares antigos que nunca conhecemos e nos amam na cama prolongando as noites com gemidos incompreensíveis. É disto que vai constando a vida que nos resta e entretanto pergunto-me com sinceridade se sou vítima dos olhos negros dos mortos.

ordinal: 1º

Às vezes penso se minha mãe saberia dos meus amantes. Incomoda-me pensar isso, mas não sei se porque gostaria que ela o desconfiasse, sem nunca mo ter dito. Sento-me aqui à janela, seminua, toco as pernas de vez em quando, roo as unhas, leio livros. É cliché dizer que todo o mundo acontece lá fora? Porque quando olho lá para fora noto isto: todo o mundo acontece lá fora. Os carteiros e os carros, os homens de sobretudo, as mulheres, as crianças, os velhos, os pombos, os cães, os gatos... as ervas por entre as pedras da calçada, que nunca percebi porque têm o nome de "paralelos"... e, de resto, o que importa isto, senão como elemento a ocupar mais espaço? Um artifício de pensamento, uma técnica da prosa. Quando olho lá para fora sinto que todo o mundo, aliás, acontece cá dentro, conforme o olho e o sinto. E gosto de estar aqui, à janela, porque, assim, sei que tudo é real, as minhas pernas e os homens de sobretudo, a fumar cigarros no meio da rua, cheios de si mesmos, das suas preocupações, dos seus problemas, a viver as suas vidas, não cientes de mim, aqui em cima. Que percentagem tão mínima, os meus amantes, meu deus! E será que a minha mãe se preocupava com isso? Será que a minha mãe roía as unhas, no quarto ao lado, quando eu não voltava, à noite? Será que desconfiava de com quem eu estaria? Que imaginaria todas essas coisas, os corpos dos homens que me tiveram (e que tive, que ingénuo erro, o de presumir que só porque os seus sexos vermelhos e roxos e os seus rostos vermelhos e roxos sobre mim e dentro de mim, à vez, apenas eles me tiveram... e, na verdade, quantos, deles, me tiveram? A quantos deixei que me tivessem?) e o que me sussurrariam ao ouvido, quando, deitada de costas, me beijavam o pescoço antes de adormecerem?
A minha mãe nunca notou as minhas lágrimas, talvez isso não interesse para nada; não interessa, com certeza, agora. A gente nota que está tudo acabado quando perde uma pessoa, a minha mãe não volta mais e não adianta pôr-lhe flores na campa, nem visitar o lugar onde a enterraram. Na missa do funeral, o padre disse que um cemitério não é um sítio final, que em grego cemitério quer dizer "dormitório", e outras coisas acerca de dormir em paz e de primeiros cristãos. Julgo que isso me tenha dado ainda mais vontade de pensar o oposto. Morre em paz, mãe, acho... conforme perco tempo contigo, nestas considerações, é como se vivesses, não é? Lembro-me de quando me lavavas os joelhos, sempre que caía. De como me tentavas assustar no escuro, quando estavas zangada comigo. Às vezes não sei se tenho saudades tuas, mãe, é tão complicado... nunca soube nada, a sério, sobre ti. Tiveste amantes, mãe? A tua mãe roía as unhas por tua causa, imaginando-te nua, uma extensão dela, na cama com um homem que desconhecia, excitado contigo, estranho a ela mas parte de um bocado dela? Porra, que felicidade de não ter filhos, mãe! E lá fora o mundo existe, cheio de filhos, de pessoas que se perpetuam, se tivesse um filho podias existir mais uns anos, restos bioquímicos de ti dentro de um invólucro de carne e ossos, com coisas moles pelo meio, olhos, língua, isso.
Apetece-me falar de ti como se aqui estivesses, quando me vejo ao espelho, por vezes, pareço-me uma versão de ti com coisas do pai, também, e outras que, por mistura, são só minhas. Não tenho o teu corpo e por isso penso muitas vezes que, se o pai tivesse sido mulher, teria tido um corpo igual ao meu. Mas tenho os teus cabelos e o teu rosto, que imagem mórbida, já viste? É como se a gente os roubasse a quem nos pare. Como se a gente, quando nascesse, vos tirasse o cabelo e o rosto. Somos só coisas, cópias, "tem os olhos do pai", "tem o queixinho do avô" e logo eu, que nem sequer conheci o avô, só numas fotografias muito antigas, lá estava ele: o avô, sentado, de perna aberta num pomar, sobre um banco, com uma bengala e uma espingarda, a careca mais branca que o resto da fotografia e o bigode subitamente negro, como se fosse um corvo que lhe atravessava o rosto. O queixinho do avô, sério, a exigir "respeito! Sou eu quem põe o pão na mesa, nesta casa!" Se houvesse pequenos motins, insurreições no seu domínio residencial, no seu pequeno império de quatrocentos metros quadrados, um dedo indicando a espingarda na parede, ou um punho erguendo a bengala de pau-santo. Parece pau-santo na fotografia, no meio do pomar, com umas mulheres velhas à volta e as maçãs nas árvores. As mulheres caladas perante o queixo. Lá longe, nuvens, mas em nenhum lado mundo, como ali em baixo. Sabes, já nem me lembro do sobretudo do avô, na fotografia, teria sobretudo, mãe? Deves lembrar-te melhor que eu. No mundo, vês, há gente a sério, lá em baixo.
No meu corpo houve gente a sério que recebias em casa com sorrisos mas sei que ardias por dentro, oferecias-lhes sumo de laranja e cozinhavas-lhes bacalhau e carneiro mas sei que, se pudesses, os tinhas cegado com um garfo, à refeição, por terem usado o meu corpo, ou seja, um bocado do teu.
Mãe, ainda existes nisto que sou eu?

Wednesday 12 August 2009

número zero, como sempre e dantes

Criar este espaço é uma coisa que vai fazendo falta. Se calhar muitas pessoas (e falei com algumas delas a este respeito) diriam "para quê mais um blog?" E é redundante responder a isto, porque, de facto, existem bastantes textos introdutórios a blogs que se iniciam com muita energia e força de trabalhar, intitulados "mais um blog", ou coisa que o valha. Mas, neste caso, era imperativo criar este blog, criar esta força criativa (passo o pleonasmo), porque - e, aqui, falo por mim e pelo amigo com quem decidi abrir este blog - sentimos que estávamos a estagnar na nossa "obra", na nossa escrita. Garantidamente que isso está a acontecer, e, portanto, pretendemos poder ter, aqui, um refúgio gerador de um certo e específico ofício da escrita (cito este termo a propósito de uma conversa com outro grande amigo, o Paulo, que, por sua vez, citava António Lobo Antunes), um local propício à construção inter-estruturada e combinada dos nossos esforços literários. Toda a presunção à parte, o que queremos é voltar a escrever pelo prazer de suceder estarmos a escrever num certo momento. Nem que, para isso, tenhamos que nos forçar a escrever todos os dias, ainda que uma ou duas linhas de um texto contínuo, a par, que será o propósito último do blog. Em copo ou cone? Aparentemente, das duas formas, aproveitando e conjugando as qualidades e compensando os desméritos de ambas.

Pedro Tiago (groze)


No fundo, tudo vai passando despercebido e tudo é mais um mergulho no meio de tantos, tudo se vai perdendo de início pela motivação que nunca chega a aparecer, por muito que se pense querer uma coisa. Este blog, para além de refúgio pseudo-artístico/poético, funciona como isso mesmo, uma motivação para a nossa criação,
uma obra de arte que nos criará aos poucos e nos será uma casa para as letras, uma paragem obrigatória ao intelecto (se é que este por aí ainda ^^). Para além de tudo, estou certo que será motivo para serões bem passados a partilhar ideias ou seja o que for, mas a partilhar, que tanto vai fazendo falta. Um projecto para a posteridade, uma necessidade urgente, um colóquio sobre qualquer coisa que valha a pena colocar em copo ou cone.

Mortir