Thursday 26 April 2012

ordinal: 6º

Lembro-me com alguma mágoa de ver velhos matar cães recém-nascidos dentro de sacos de serapilheira, quando ia ao campo, a casa dos meus avós, na minha infância. Fazia-me impressão, pensava "é desumano". E é desumano, mas ensinou-me uma coisa mais, ensinou-me uma coisa indizível, não facilmente posta em palavras, provavelmente até mesmo inexistente na sua génese, que seria a minha cabeça. Que é, ao certo, isso? Acho que é estarmos todos presos aqui. Claro que é mau, isso. Não sei se ainda o fazem e espero que não mas, no fundo, não me importo, não quero saber. Que matem cães e gatos recém-nascidos, na verdade. Nunca quis saber dessas coisas. Doía-me imaginar os animais, como uma massa homogénea de vida minúscula, a sufocar debaixo de água, nos tanques e nos regatos, sem força para se debaterem, sem ar, sem espaço, a arranharem-se uns aos outros numa talvez ânsia de oxigénio. Eu era pequena, era impressionável. Ficava a ver aquilo e só me lembro da minha imagem (via-me de fora), boquiaberta, com qualquer coisa na mão esquerda (uma vide?) e as pernas feridas de silvas e de insectos. O saco mexia-se no fundo da água, depois parava e deitava-se o conteúdo no lixo, punha-se o saco a secar. "O saco é importante, podemos precisar dele".

Que sei eu do que é o campo? Condeno coisas porque tenho de condenar, porque me ensinam a condenar. O que me rala é ter um homem, pelo menos um homem, de vez em quando, que me abrace, deixo-o foder-me para depois me abraçar, tenho medo que me enfiem dentro de um saco de serapilheira e me ponham debaixo de água, os velhos, porque sou inútil, sirvo para parir mais pessoas mas sinto-me infértil, sinto-me um terreno onde era necessário fazer uma queimada urgentemente, mudar a cultura, uma fazenda onde é nítido que as batatas já não crescem mais, e é necessário, agora, plantar-se feno, para que volte a dar batatas. Claro que odeio os velhos que matam os cães e os gatos recém-nascidos, claro. Porque esperam que diga isso, na cidade é o que me pedem, sob pena de ser "reaccionária", retrógrada. Não é que não condene, só que me lembro de nunca ter realmente chorado, quando via fazerem isso. Os animais estavam a mais, os sacos é que não, podiam ser precisos, mais tarde.

Nas lojas da cidade já não há serapilheira. Em certos dias devia matar uma ninhada de gatos, fazer com que as pessoas me odiassem, me batessem. Não me importa o calo emocional. Decidi isto agora.