Saturday, 2 June 2012
Ordinal: 7º
Thursday, 26 April 2012
ordinal: 6º
Saturday, 10 March 2012
Ordinal: 5º
As minhas mãos são grandes demais para uma mulher e, eventualmente, também o meu coração. Procuro no frigorífico pela estática do tempo que tende a fazer parte da minha vida sempre que as palavras se tornam insuficientes para explicações menores. Não há comida porque não fui ao supermercado, porque não saí de casa e não encontrei homens com quem pudesse ir para a cama mesmo que, no fim, me dissessem que as minhas mãos, o meu coração são grandes demais e o medo do frio, de viver num armazém sem decoração, sem mobília, os afugentasse. Depois do sexo os homens não são homens; são plantas de vidro que reflectem o sol e esperam novos incêndios, que procuram no céu um silêncio, uma constelação onde o despropósito faça mais sentido, onde, de novo, nos possamos abraçar sem consequências reais porque o mundo real, a realidade, para os homens, é ilusória. Remexem na roupa espalhada pelo chão e encontram uma flor que me oferecem porque o amor é um desenho infantil reencontrado, uma estúpida sensação de imortalidade que desvanece em orgasmos sucessivos.
Abro as janelas e choro. Chorar é bom, faz bem. Mas lembro-me da minha mãe que chorava enquanto o meu pai descia a escada para a cave e dizia “Nunca mais volto, não posso porque o amor precisa destas coisas. O amor não é físico nem pode ser relativo ao objecto exterior, entendes?”. A minha mãe não entendia e era por isso que chorava, mas o meu pai tinha razão enquanto morria e agora sei que o corpo, o acto, as realizações possíveis são inúteis quando calculadas segundo um coeficiente metafísico inalcançável. As putas ao menos um corpo apaixonável, mãos de puta mas, ainda assim, de mulher e um coração habitável com mobília e destroços e sem espaço para ninguém. Um gato, eventualmente. Olho-me ao espelho e o corpo parece-me gasto, prostituído. As unhas mal roídas, as pernas inchadas de sexo a desfazer-se como uma vela em chamas, os braços caídos ameaçam raízes, constituições botânicas impraticáveis nos nossos tempos, os dentes por lavar e o cabelo a cair depois do sangue, da menstruação, o sinal de deus para mais um falhanço evolutivo. Ponho um tampão e é como se o enfiasse na boca de deus, como se o calasse.
Tenho amigas casadas, com namorado, com filhos, com casas onde guardar os filhos e onde partilhar os filhos. Tenho amigas que me olham com indelicadeza por nunca ter fodido os maridos delas ou por não ter um homem que elas pudessem foder. A sinceridade com que partilham a vida, a cabeça vazia dentro dos pulmões, é suficiente para explicar a natureza humana. As crianças empilhadas em campos de trigo e pessoas que lhes arrancam os olhos para fazer colares, brincos, pérolas. Os filhos, hoje em dia, pequenos colares. Diamantes que se alimentam e crescem e um dia perdem o valor porque já não cabem no coração de ninguém.
Tuesday, 6 March 2012
ordinal: 4º
Tuesday, 10 November 2009
Ordinal: 3º
Não sei até onde ir, assim, nua, quase primata, nesta despreocupação propositada de me tornar confortável: Tenho pêlos, ando curvada, não me pinto, não me penteio e procuro perder um nome já quase gasto em contos pós-modernos de autores mortos pela inquisição. Sou então uma religião perdida no espaço e reinventada pelo homem, ao sábado, quando as igrejas fecham e as flores nos cemitérios sucumbem ao vento aclamando um ciclone multicolor.
Quando, à noite, me deito ao lado de um homem e ele se desintegra, fecho-o no abat-jour do candeeiro da sala, junto dos outros, e sento-me no chão, de epiderme salgada a ouvi-lo ressonar, em uníssono com a Terra e, consequentemente, com o mundo lá fora.
Às vezes sonho que o meu coração serve de quarto a alguém.
Wednesday, 4 November 2009
ordinal: 2º
Hoje que me mantenho aqui a abraçar os meus próprios joelhos, acaricio a minha pele torturada de tanto contacto com gente a sério e faltas-me sem que eu me preocupe com isso. Pariste-me e eu fui-te matando numa inconsciência quase deliberada de te furtarem de mim e o que resta de ti em mim é a memória escassa de um corredor cheio de homens imaginários com foices de plástico descartável a decapitar o meu gato a sério que me morreu, por tua causa, tantas vezes em sonho. Os teus amantes eram maus, mãe, e para além disso ainda me restam medos esquisitos que me toquem nos seios por causa deles que, tantas vezes me falaram em italiano enquanto te despiam com os olhos e te enchiam o corpo de um sangue perfumado que te atraía para os seus joelhos. Não me censures por morrer, portanto. O mundo continua a acontecer todo lá fora: Cá dentro resto eu a morder o joelho direito e a sugar o sangue derradeiro de ti em mim para que circule e entendo que os meus seios crescem circularmente enquanto me brotam protuberâncias renais que me incomodam sem saber de ti nem dos meus amantes quando, subitamente, o pai entra em casa e ajeita a barba do dia anterior e pensa um pouco sobre as flores que nos restam no universo. Ao ver o meu estado pontapeia-me o maxilar e chama-me nomes equídeos, estranhamente recíprocos, que me ensanguentam e me aborrecem por ele não morrer do mundo lá fora, entendes avó? Agora que somos todos simples vítimas do sexo deslavado, que cores restam para filmar uma longa metragem? Vivemos num pequeno cubículo cinzento e assexuado que plantamos de flores que nos lembram familiares antigos que nunca conhecemos e nos amam na cama prolongando as noites com gemidos incompreensíveis. É disto que vai constando a vida que nos resta e entretanto pergunto-me com sinceridade se sou vítima dos olhos negros dos mortos.
ordinal: 1º
A minha mãe nunca notou as minhas lágrimas, talvez isso não interesse para nada; não interessa, com certeza, agora. A gente nota que está tudo acabado quando perde uma pessoa, a minha mãe não volta mais e não adianta pôr-lhe flores na campa, nem visitar o lugar onde a enterraram. Na missa do funeral, o padre disse que um cemitério não é um sítio final, que em grego cemitério quer dizer "dormitório", e outras coisas acerca de dormir em paz e de primeiros cristãos. Julgo que isso me tenha dado ainda mais vontade de pensar o oposto. Morre em paz, mãe, acho... conforme perco tempo contigo, nestas considerações, é como se vivesses, não é? Lembro-me de quando me lavavas os joelhos, sempre que caía. De como me tentavas assustar no escuro, quando estavas zangada comigo. Às vezes não sei se tenho saudades tuas, mãe, é tão complicado... nunca soube nada, a sério, sobre ti. Tiveste amantes, mãe? A tua mãe roía as unhas por tua causa, imaginando-te nua, uma extensão dela, na cama com um homem que desconhecia, excitado contigo, estranho a ela mas parte de um bocado dela? Porra, que felicidade de não ter filhos, mãe! E lá fora o mundo existe, cheio de filhos, de pessoas que se perpetuam, se tivesse um filho podias existir mais uns anos, restos bioquímicos de ti dentro de um invólucro de carne e ossos, com coisas moles pelo meio, olhos, língua, isso.
Apetece-me falar de ti como se aqui estivesses, quando me vejo ao espelho, por vezes, pareço-me uma versão de ti com coisas do pai, também, e outras que, por mistura, são só minhas. Não tenho o teu corpo e por isso penso muitas vezes que, se o pai tivesse sido mulher, teria tido um corpo igual ao meu. Mas tenho os teus cabelos e o teu rosto, que imagem mórbida, já viste? É como se a gente os roubasse a quem nos pare. Como se a gente, quando nascesse, vos tirasse o cabelo e o rosto. Somos só coisas, cópias, "tem os olhos do pai", "tem o queixinho do avô" e logo eu, que nem sequer conheci o avô, só numas fotografias muito antigas, lá estava ele: o avô, sentado, de perna aberta num pomar, sobre um banco, com uma bengala e uma espingarda, a careca mais branca que o resto da fotografia e o bigode subitamente negro, como se fosse um corvo que lhe atravessava o rosto. O queixinho do avô, sério, a exigir "respeito! Sou eu quem põe o pão na mesa, nesta casa!" Se houvesse pequenos motins, insurreições no seu domínio residencial, no seu pequeno império de quatrocentos metros quadrados, um dedo indicando a espingarda na parede, ou um punho erguendo a bengala de pau-santo. Parece pau-santo na fotografia, no meio do pomar, com umas mulheres velhas à volta e as maçãs nas árvores. As mulheres caladas perante o queixo. Lá longe, nuvens, mas em nenhum lado mundo, como ali em baixo. Sabes, já nem me lembro do sobretudo do avô, na fotografia, teria sobretudo, mãe? Deves lembrar-te melhor que eu. No mundo, vês, há gente a sério, lá em baixo.
No meu corpo houve gente a sério que recebias em casa com sorrisos mas sei que ardias por dentro, oferecias-lhes sumo de laranja e cozinhavas-lhes bacalhau e carneiro mas sei que, se pudesses, os tinhas cegado com um garfo, à refeição, por terem usado o meu corpo, ou seja, um bocado do teu.
Mãe, ainda existes nisto que sou eu?